OBRAS
SAMARA OLIVEIRA
Mossoró (RN), 1991 l Vive e trabalha no Litoral Norte de São Paulo (SP), Brasil.
Samara Oliveira é pintora e também trabalha com diversas mídias das artes visuais, incluindo instalação, videoarte, fotografia, escultura, desenho e gravura. Nascida numa pequena cidade do sertão nordestino, possui marcas profundas que são reveladas através da prática artística. Suas construções poéticas caminham em torno da abstração, além de trazer reflexões sobre a atual situação da mulher e jovens nordestinos. Sua poesia visual carrega fúria, organização e gestualidade. Hoje, Samara Oliveira trabalha e vive no Litoral Norte de São Paulo, onde orienta crianças da comunidade e mantém uma intensa produção visual.
A artista é Bacharel em Artes Visuais pela Fundação Armando Alvares Penteado, além de ter estudado e se destacado em escolas como Belas Artes e Panamericana (todas em São Paulo-SP). Premiada e bolsista na Fundação Armando Alvares Penteado, suas obras integram o acervo permanente do Museu de Arte Brasileira.
Participou da exposição “Diálogos Distantes” promovida pela Galeria Tato, com curadores renomados. Integrou a exposição no Instituto Cervantes em São Paulo, sob a curadoria de Waldo Bravo. E expôs obras durante meses na galeria Art Lab Gallery, localizada na Oscar Freire em SP. Em 2021, foi contemplada com três trabalhos, na exposição “Centenário da Semana de 22”, em Barueri- SP.
ENTREVISTA
Como você entrou para o mundo das Artes?
A minha jornada nas Artes Plásticas começou aos 19 anos. Nesse período, comecei a fotografar paisagens e encantar-me com as simplicidades das formas presentes na natureza selvagem do agreste nordestino. Iniciei na pintura aos 22 anos, num processo de descobrimento por meio do autodidatismo. Desde então, tenho me dedicado a estudar e trabalhar todos os dias com diversas mídias, incluindo pintura, escultura, desenho, videoarte e outros meios que são utilizados para exteriorizar meus pensamentos.
O que você entende como Artes Plásticas?
Artes Plásticas são registros de vida de um determinado indivíduo ou de um grupo social que trabalha para gerar pensamentos e questões em outrem, por meio de experiências e memórias. O transbordamento de sentimentos e emoções vivenciados encontra, na diversidade de linguagens, um apoio para a construção de poéticas visuais. A arte torna-se um meio para contrastar subjetividade e exterioridade, gerando confrontos e vivências sensíveis. É um eterno retorno às memórias durante a criação. Construindo assim, vida visual através de indícios do inconsciente e da pré-consciência. Os pensamentos são pré-conscientes, quando estão inconscientes em um determinado momento, mas não são reprimidos. É através do acesso a essas imagens armazenadas, que é alcançada a fonte inesgotável da criatividade. O mergulho no mundo externo e interno transforma-se em trabalhos que exercitam a imaginação. Contudo, as artes plásticas, acima de qualquer teoria, é o que cada um leva para si, a partir da experiência com a imagem, objeto ou imersão. A arte é a realização da necessidade interna, um panorama dos resíduos de vida.
Como você define sua Arte?
Busco uma poética que tem relação dialógica com o movimento Expressionismo Abstrato que ocorreu em Nova Iorque, assim como a matriz expressionista das vanguardas históricas. O Expressionismo abstrato reflete a ansiedade e a violência que os EUA estavam enfrentando na segunda metade da década de 1940. Partindo de sentidos sensíveis como memória e dor, a subjetividade é externalizada por meio de suportes e linguagens, transformando experiências vividas em artes não figurativas que tratam do mundo interior. Assim, as pinturas têm relação com o modo de pintar dos artistas americanos posteriores à Segunda Guerra Mundial. A técnica Action Painting, como ficou conhecida, trata-se de uma pintura bastante gestual, na qual a tinta é lançada diretamente na tela, através de gestos instintivos, em que o acaso e o aleatório determinam a evolução da pintura. Jackson Pollock, principal autor da técnica, disse: “O artista moderno está trabalhando e expressando um mundo interior, a energia e o movimento e outras forças internas.”
O principal tema para mim, de fato, é a abstração, o que implica claramente a expressão de ideias sobre o espiritual, o inconsciente e a mente humana. Com empastes pesados e grosseiros de pigmentos sobrepostos, crio formas e composições que atravessam a consciência por meio de uma expressão artística livre. Minhas pinturas, com novas estruturas, não são elementos tomados pela visão, mas pela realidade da compreensão. Através de um processo natural de abstrair as coisas, a arte abstrata nasce como meio de expressão de imagens interiores, memórias, dor e experiências.
Acredito que o processo criativo é como um estado de revelações das histórias pessoais e de construções poéticas. A abstração surgiu para criar um mundo de possibilidades, a partir da destilação da essência da realidade.
Nas esculturas, utilizo barro do interior da Mata Atlântica, crio formas visuais abstratas, com conceitos culturais, aspectos subjetivos e psicológicos. Busco expressar e contrapor o idealismo e moralismo da arte clássica. As principais temáticas das esculturas são a figura humana, as inspirações das paisagens tropicais e os gritos silenciosos que habitam em cada ser. A representação de corpos humanos artísticos, através dos tempos, reflete a cultura, sempre permeando a fugacidade da vida. A experiência de viver na natureza inóspita da Mata Atlântica, banhada por grandes mares esverdeados, treina o olho e a alma. Procuro transformar minha sensibilidade e sentimentos mais profundos, em gestualidade e liberdade pictórica, incondicionalmente usados para resultar numa imersão profunda na expressão sensível da mente humana.
Investigo a poética através de pulsões e respostas ao mundo ao meu redor. Em suma, minhas pinturas são registros instantâneos de memórias. Procuro materializar em arte as sensações sobre os lugares e interpretações sobre os momentos, assim como pensamentos sobre situações da vida.
Quais são suas maiores referências no mundo das Artes?
Embora mulheres tenham se destacado nas artes ou na academia ao longo da História, o registro de suas atuações foi raro. Os livros referências de História da Arte nos cursos de ensino demonstram isso. Pensando nessa questão, e por ser uma mulher nordestina, minhas referências para pintar são figuras femininas que marcaram as artes plásticas. Para enriquecer a visão e lançar grandes voos imagéticos, sempre recorro a algumas artistas para a construção dos trabalhos de artes. Algumas delas são Grace Hartigan (1922-2008), Joan Mitchell (1925-1992), Lee Krasner (1908-1984), Louise Bourgeois (1911-2010), Elaine de Kooning (1918-1989) e Helen Frankenthaler (1928-2011). Todas potentes e corajosas, que traçaram caminhos de bravura e forte reconhecimento. Com produções gestuais e cores contrastantes, essas artistas criaram paisagens interiores e deixaram-nos uma riquíssima herança cultural.
Já para executar as esculturas, estudo Alberto Giacometti (1901-1966), Camille Claudel (1864-1943), Antony Gormley (1950), Victor Brecheret (1894-1955) e Mark Newman (1962). E para os vídeos, investigo as produções de artistas como Jesper Just (1974), Bruce Nauman (1941) e outros, que utilizaram o vídeo para se comunicar internamente.
Para a construção de trabalhos artísticos, os pensadores e pensadoras, desde os clássicos ao contemporâneo, são de suma importância. Algumas das referências de literatos são Cecilia Salles, Fayga Ostrower (1920-2001), Sigmund Freud (1856-1939), Giulio Carlo Argan (1909-1992), David Anfam (1955), Herbert Read (1893- 1968), entre outros intelectuais que criam uma teia de subjetividade sobre história da arte e os processos criativos.
Obras literárias também são fundamentais para inspirar e enriquecer a imaginação. Histórias como as de Edgar Allan Poe (1809-1849), Samuel Beckett (1906-1989), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Virginia Woolf (1882-1941), nutrem o espírito de fantasia e imagens subjetivas. O que resulta em criações mais dinâmicas e com maior profundidade de sentimentos.
Quais são os principais temas utilizados em suas obras? E por quê?
Os principais temas para mim são o feminino, o corpo, a essência humana, a dor, as paisagens emocionais e as abstrações. Como cada indivíduo possui uma representação corporal que assume como sua própria identidade, então, o corpo está todo presente no ato de criar a obra, uma vez que ele é o corpo que opera a ferramenta para a transformação da matéria. Por meio da argila, modelo esses corpos vindos de sonhos para que afetem a realidade . Além disso, procuro dialogar com temas relacionados à cultura brasileira. Percebo que sou resultado de inquietações e pulsões criadoras, que insistem em querer se apropriar de temas relacionados à dor e vida. Mas, no fim, não escolho o tema, o tema é que me escolhe.
Quais são as principais técnicas utilizadas em seu trabalho? E quais delas você mais gosta de utilizar?
O meu trabalho passa por diversas mídias: fotografia, pintura, escultura, desenho, instalação e gravuras.
Fotografar é registrar percepções vindas da natureza e da vida contemporânea. Em imagens, editadas pelo Photoshop, procuro atribuir significados e signos diferentes para cada composição. Realizei mais de 500 ensaios fotográficos durante esse tempo.
As principais técnicas que utilizo nas pinturas são acrílico, óleo e aquarela. Nessas pinturas, busco apropriar-me da materialidade de diferentes matérias-primas e sobrepor uma cor à outra, por diversas vezes, construindo camadas com atmosferas de sensações e emoções. As cores tornam-se fragmentadas e sem perspectiva aérea e, para cada composição, acontece quase um estado de meditação criativa, onde todos os sentidos sensíveis estão despertados. São pinceladas pingadas, escovadas, escorregadas, e aplicadas com muitos tipos de pincéis ou esfregados com os dedos ou trapos. As pinceladas são líricas e caligráficas.
Nas esculturas, utilizo o barro retirado da Mata Atlântica e transformo a matéria em formas com linhas, volumes, sombras e curvaturas que concentram e cristalizam emoções pessoais e relações com a sociedade. Depois de modelar, a artista oca a escultura e depois da queima, pinto com esmalte para cerâmica. Depois de assada novamente em temperatura de 1300° graus, pinta mais uma vez as esculturas com tintas para vidro, com a finalidade de dar um acabamento ainda mais artístico e autoral às peças. Um processo lento e de muita paciência e perseverança, o que pode levar meses para conclusão do trabalho.
Um processo instintivo e resultado de estudos e pesquisas, a criatividade é inesgotável, uma vez que tudo presente na sociedade e natureza pode virar arte.
Nos desenhos, trabalho com pastéis e bastões oleosos coloridos. Utilizo também materiais industriais, como esmalte. Material bastante utilizado por artistas expressionistas abstratos. Ao lançar tinta na tela, busco tecer uma cadeia de sentimentos perceptivos. As cores da paleta são variadas, visto que cada cor possui uma característica de despertar emocional diferente no público. E a cor é algo profundamente subjetivo e entrelaçado com memórias, sentidos ou emoções e nossos sentimentos.
Nas instalações, proponho uma imersão ao mundo de subjetividade mediante ao contato com o espectador, buscando movimentos e dinâmicas corporais. As instalações são formadas de vídeos, pinturas, desenhos, fotografias e esculturas.
Para as gravuras, o processo é ainda mais profundo, revisito as maiores dores para trazer imagens sem formas e desintegradas com a realidade. O desenho nas pedras e matrizes é rápido, gestual e quase neurótico. A tensão é dada pelos inúmeros desenhos que se avolumam entre eles. Nesse sentido, a arte existe como uma chama ardente que pulsa nas veias. Nesse encontro entre pulsões, gestos, fantasias, memórias, espiritualidade e imaginário, a ação faz parte de um processo de autoconhecimento e cura. Para mim não importa a mídia, mas sim a comunicação íntima que cada trabalho pode gerar no espectador. Pois, uma arte deve expressar emoções profundas, ser conflituosa, causar estranhamento e por último, fazer o ser humano tocar a sublime expressão da alma.
O que você busca passar através de suas obras para o espectador?
A arte traz consigo experiências que vão além da lógica simples. Estão no âmbito das sensações decodificáveis. As obras de artes oferecem a possibilidade de criar interpretações e pensamentos únicos. Trata-se de uma troca íntima entre artista e público, em que o espectador deve usar sua sensibilidade para perceber o que a arte é para si. Tudo é livre, simples e sincero.
Sou muito comprometida com a ideia de comunicação emocional. Nas pinturas, tento provocar e deixar o espectador acessar um outro nível de experiência sensorial, poética e subjetiva. Os trabalhos pictóricos causam reações emocionais, mas também promovem a identificação de elementos materiais. A análise do público pode ser visual ou simbólica. As pinturas registram camadas de subjetividades, através de meios diretos e embotados, e falam diretamente com o nosso interior.
Nas esculturas, quero gerar desconforto quanto às formas únicas e trazer reflexões sobre a situação das mulheres nordestinas, por meio de formas que habitam o meu imaginário. Como a leitura das obras pode ser dependente das sensações que provoca em cada um de nós, procuro estabelecer uma fronteira entre o real e imaginário, acendendo chamas na percepção.
Quais as melhores e maiores experiências em sua carreira artística?
Em 2019, quando ainda estava no 2º ano da faculdade, participei da 51ª Anual de Artes realizada pela renomada FAAP-SP. Ganhei o concurso em 1º lugar e meu trabalho de instalação passou a integrar o acervo do Museu de Arte Brasileira. A obra, bastante política, falava da vulnerabilidade das mulheres nordestinas e as causas e efeitos de traumas gerados pelo poder patriarcal. Além disso, fui contemplada com uma bolsa de estudos na FAAP, lugar onde estudei e adquiri o diploma de Bacharel em Artes Plásticas. Também fui contemplada em editais para exposições no estado de São Paulo, como a mostra sobre o “Centenário da Semana de 22”, que ocorrerá no final deste ano de 2022. Nesta oportunidade, apresento trabalhos poéticos e com grandes cargas de energia. Enlutei a figuração e irei expor pinturas e gravuras que propõem uma nova visão de arte, a partir de uma estética inovadora inspirada nos movimentos americanos.
Em sua obra existe um cunho de protesto além do que se é obviamente visto? Se sim, qual? Se não, há algum tema que desperte a sua vontade de protestar?
A arte, para mim, é como revelações de temas de guerra e conflitos, traumas, memórias, desumanidade e alienação na esfera pública. A arte é política, procuro materializar traumas do período em que estive no sertão. Acredito que a arte é pura resistência frente às classes dominantes e expressam cargas agressivas de sentimentos. As minhas memórias são permeadas de imagens dolorosas e ao sentir o retorno desses registros, e em busca de expressar saudades e sentimentos, meu corpo é tomado por energia que faz os punhos caminharem desesperadamente na tela. Criando assim, signos de protestos pictóricos.
Nas esculturas, trabalho com pensamentos sobre mim mesma e as mulheres do sertão. Pensando nas múltiplas violências que essas mulheres sofrem, recrio a figura feminina com buracos e, às vezes, sem rostos. Nessas criaturas tudo é escuridão, poesia e subjetividade. Trabalho sempre motivada por questões sociais. Acredito que a arte deve possuir atitude política, e meus gestos vêm das reações provocadas pelas mazelas da humanidade. Mas, o ato de pintar e criar arte, mesmo diante de memórias perturbadoras, é um ato de protesto, ou como diria Lisette Lagnado: “Toda arte é política”.
Você tem interesse em fazer uma exposição itinerante? Se sim, como você imagina essa exposição? Saberia dizer qual tema gostaria de abordar?
Para uma exposição itinerante existem várias opções, já que trabalho com diferentes mídias. Com pinturas, poderia criar uma sala expositiva com obras abstratas que falam de paisagens interiores, sonhos e sentimentos. Nesses trabalhos, recriaria paisagens inventadas e novas, com bastante delicadeza, feminilidade e protesto. Isso seria uma exposição sobre paisagens abstratas emocionais com imagens que vieram de experiências de minha raiz mossoroense e meu olhar sobre a sociedade.
Para uma montagem, seria possível incluir tanto pinturas realizadas na tela em algodão e chassi, quanto pinturas em papéis construídas com aquarela e esmalte e emolduradas. Nessa exposição, também criaria pinturas de várias dimensões, criando um certo dinamismo. Apesar de abordar o tema paisagens emocionais, as pinturas também seriam diferentes uma das outras, trazendo bastante diversidade de imagens. Mas, é possível criar uma exposição mista com pinturas e esculturas. Nessas peças escultóricas, criaria uma série de seres imaginados com reflexões sobre mulheres.
Dessa forma, esculturas e pinturas produzidas pela mão e visão de uma mulher mossoroense expandiriam o entendimento do observador quanto ao nordeste, assim como provocaria e ressaltaria uma produção de arte sobre uma perspectiva abstrata. Como também sou fotógrafa, incluiria algumas fotos de ensaios femininos e paisagens, resultando em uma exposição bem diversa e rica de técnicas que teriam várias possibilidades de leitura.
Aonde você almeja chegar como artista plástico?
Como artista plástica, estudo há oito anos e só no começo do ano de 2022, estou conseguindo me profissionalizar na área. Uma carreira bastante jovem e promissora. Estou sempre em busca de novos temas e composições, residências artísticas internacionais estão nos meus planos para 2023. Além disso, estou estudando com o grupo de acompanhamento para artista com a equipe do Ateliê 397,um lugar bem conhecido por orientar artistas e promover exposições em São Paulo-SP.
Quero continuar a orientar crianças da comunidade e em breve quero melhorar minhas condições de trabalho, alugando um ateliê maior para ficar ainda mais livre para criar. Nas esculturas, iniciadas em 2022, já estou trabalhando com um serralheiro que promete dar um acabamento ainda mais profissional às obras. Estou sempre lendo, trabalhando e estudando. Desejo levar a arte produzida por uma nordestina para diferentes países, produzir novos conhecimentos sobre as mulheres brasileiras e, assim, desconstruir preconceitos. Tenho vontade de conquistar muitas coisas e certamente tenho uma chama criativa pulsante nos punhos. Uma compulsão por criação, resultado de crises emocionais. Para mim, a arte também é como um vinho, amadurece e melhora com tempo e trabalho.